Por que o Google Glass não é o futuro que precisamos


Por Pedro Burgos

O brinquedo tecnológico mais falado de 2012 não é um videogame, um iQualquer coisa ou o tablet da Microsoft, e sim o Google Glass. Porque nada parece tão 2030 quanto um computador-com-tela-acoplada-aos-óculos. Nos grandes jornais e portais, ele sempre é tratado como os “óculos do futuro”, e os efeitos especiais do primeiro vídeo de apresentação fez fãs de Homem-de-Ferro criarem grandes expectativas. Faltava vê-lo funcionando na prática. Na última semana, em seu grande evento anual, o Google poderia ter gastado todas as forças no novo tablet com um custo-benefício incrível, ou a versão para Android mais rápida e bonita, mas a gigante preferiu gastar muitos, muitos minutos e uma surperprodução digna de Michael Bay para anunciar que o Glass já estava mais ou menos funcionando, e estaria disponível para alguns desenvolvedores em algum momento de 2013 por US$ 1.500. Os fãs suspiraram, decepcionados, porque queriam o futuro agora. Eu não. Espero que ele morra o quanto antes, na fase de projeto. Para o bem da humanidade.

Eu já tinha minhas reservas em relação ao Google Glass, mas parecia estar sozinho nas críticas: a reação geral dos comentaristas à notícia dos óculos com um HUD era maciçamente positiva. E quem colocava em dúvidas o sentido do Glass ganhava logo a resposta automática que me fez parar de ter vontade de escrever sobre tecnologia: “Se fosse da Apple, você chamaria de mágico”. O argumento mais elaborado vinha na forma de “não podemos criticar o futuro sem saber como é” ou algo assim. Mas bom, acho que podemos criticar uma visão de futuro.

As pessoas de hoje (ao menos as que comentam na internet), parecem tão acostumadas a ter a atenção dividida que querem incorporar este modus operandi a todas as horas acordadas. Se assistimos ao Oscar e tuitamos no smartphone ou jogamos videogame prestando atenção em inúmeros contadores, nada mais normal que um picture-in-picture da vida real. “Pense nas possibilidades! Isso sim é revolucionário!”, diriam os mais empolgados, querendo aumentar o alcance da realidade aumentada.

Pensando videogamísticamente, é claro que há uma real utilidade para o Google Glass em algumas situações: médicos poderiam se beneficiar vendo, durante uma cirurgia, tanto as reações do paciente quanto a microcâmera dentro de uma incisão; militares ou policiais de forças especiais poderão receber informações visuais críticas mantendo o foco no que está à frente. Talvez engenheiros, biólogos e outros consigam usá-lo em situações profissionais, muito específicas e temporárias. Para mim, o ideal é que tudo funciona da mesma forma que um capacete de piloto: acabou o uso, você tira. Como o capacete de piloto, aliás, a ideia está muito longe de ser nova. Em um artigo de 1945, o engenheiro Vannevar Bush escreveu um artigo imaginando um futuro em que os cientistas usariam óculos capazes de fotografar automaticamente “tudo que fosse digno de registro”. Quando estiver funcionando perfeitamente, é o que o Glass pretende fazer.

Mas o que vimos na apresentação cheia de pirotecnia também não foi nada muito novo: pessoas com capacetes ligeiramente menos embaraçosos que registravam coisas “dignas de registro”. O uso demonstrado, de pessoas saltando de para-quedas e andando de bicicleta enquanto transmitiam as imagens para o mundo não foi muito diferente de uma câmera de ação no capacete com um modem nas costas (os paraquedistas tinham roteadores na mochila). Não entendo como uma câmera menor nos óculos pode ser tão incrivelmente diferente ou revolucionária. Mas pelos aplausos e comentários insanamente empolgados em blogs alhures, as pessoas aparentemente acham isso divertidíssimo e o querem hoje.

Mas o problema para mim é que ao fim da demonstração, os Googlers não tiravam os óculos. O que me incomoda profundamente na visão de futuro do Google é que eles acham que alguém fora Sergey Brin gostaria de usar isso o tempo todo. Um futuro assim é perturbador. Por vários motivos.

Privacidade e novas regras sociais

Ninguém se comporta naturalmente quando se depara com uma câmera ou um gravador. Mudamos a voz para falar, confidenciamos menos, somos mais atentos ao que fazemos, menos espontâneos – à exceção, talvez, de certos participantes da Fazenda. Agora, imagine encontrar um amigo com um mecanismo de transmissão na cara. É óbvio que as pessoas não reagirão naturalmente. Babak Parviz, o chefe do time do Glass, é polianamente otimista, e disse ao AllThingsD que a “etiqueta digital” vai evoluir, com as pessoas se acostumando a alertar as outras que estão gravando. Será que todos ficarão com a síndrome-do-tio-chato (que manda todo mundo sorrir pra fotos o tempo todo no Natal)? No mundo real, pelo que eu conheço da natureza humana, a graça vai ser justamente gravar sem o conhecimento do fotografado. Se o Glass vingar, espere uma profusão ainda maior de galerias de creep shots (no Brasil, os tais flagras de meninas com roupa de academia e coisas assim), como essa do reddit. Parece divertido pra você? Pense em outros desdobramentos.

Em setembro de 2010, Dharun Ravi, de 20 anos, tuitou: “Meu colega de quarto me pediu o quarto até a meia noite. Eu fui ao quarto e liguei a webcam. Eu o vi transando com um cara. Yay.” O seu tímido recém-chegado colega de quarto da Universidade de Rutgers, Tyler Clementi, 18 anos, obviamente não sabia que seu encontro estava sendo transmitido via um Justin.tv da vida. Três dias depois, Clementi se suicidou, num caso que provocou amplas mudanças na lei e campanhas nas universidades americanas. Sim, é um caso extremo com uma reação extrema. Mas pense de novo no caso das fotos e vídeos de “ex-namoradas” que vazaram. Há inegáveis estragos sobre as vítimas. Agora pense numa ferramenta que permite tornar isso incrivelmente mais fácil e discreto, que precisa de zero tempo de setup e onde o xeretado não fica sabendo. Você pode ser uma pessoa de bem, mas nós como sociedade estamos preparados para usar isso de maneira responsável?

Pouco depois do suicídio de Clementi, Walter Krin escreveu no New York Times que George Orwell imaginou o “futuro” (os nossos tempos atuais) de maneira bem mais simples há 60 anos, quando escreveu 1984. Para Krin, em vez de termos um “Big Brother” que vigia todos, temos um exército desorganizado de Little Brothers, que não precisa de uma ditadura para criar um estado de vigilância. “A invasão da privacidade – de outras pessoas mas também de você mesmo, enquanto nós apontamos as nossas lentes para a gente na busca pela atenção a qualquer preço – foi democratizada.” O artigo fala da profusão de webcams e câmeras no celular que nos taggeiam em fotos embaraçosas no Facebook ou vídeos no Youtube. Queremos, de novo, um aprofundamento deste problema?


Poucas vezes o The Onion falou tão sério quanto neste vídeo onde um diretor da CIA diz que o Facebook reduziu os custos dos espiões.

Já temos imagens o suficiente, obrigado

Ontem de manhã o Instagram ficou fora do ar. No Twitter, começaram as piadas, do tipo “A comida vai esfriar. O Instagram precisa voltar pra eu tirar foto”. Ou “como vou aproveitar o dia de sol em São Paulo sem o Instagram?” Alguns acharam uma forma.


























A piada do #instagramporescrito expõe nosso vício em compartilhar imagens o tempo todo. Há imagens lindas, mas há imagens sem contexto, imagens banais, imagens importantes que se perdem no meio de mil outras. Não sou contra o Instagram, pelo contrário: eu adoro o negócio. Mas dificilmente posto mais de uma foto por semana e sigo bem pouca gente. O ponto, no Instagram e em qualquer outra tecnologia, é saber como usá-la e saber até que ponto ela é boa: se você se vicia em likes e compartilhamentos, pode ficar extremamente ansioso se ficar sem (algumas pessoas que conheço morreriam sem o 3G); da mesma forma, seus amigos podem perder interesse nas suas histórias genuinamente interessantes quando elas se perdem entre 80 mil updates banais. Não é fácil achar o equilíbrio.

A discussão sobre o poder e o excesso do uso da imagem, obviamente, também não é nova. Em 1890, por exemplo, quando uma foto não autorizada do casamento da filha de Samuel Warren, um advogado inglês, foi publicada, os advogados reclamaram da revolução industrial, de como as fotos estavam “invadindo a privacidade”. E nos anos 1970, Susan Sontag já decretava que “viajar se tornou uma estratégia para acumular fotos”. Sobre isso, Sherry Turkle, do espetacular Alone Together: why we expect more from technology and less from people (Sozinhos, juntos: por que esperamos mais da tecnologia e menos que das pessoas), se pergunta:

Na cultura digital, será que a vida se torna uma estratégia para estabelecer um arquivo? Pessoas jovens moldam a vida para produzir um perfil de Facebook que impressiona. Quando nós sabemos que tudo em nossas vidas é capturado, será que vamos começar a viver a vida da forma que sonhamos ser arquivada?

A pergunta parece exagerada, mas o Instagram por escrito e o fato de as pessoas esconderem Lady Gaga de seu Last.fm faz a reflexão necessária: a nossa capacidade de registrar e transmitir ao mundo não têm o poder de moldar sutilmente nossas atitudes? Quando estivermos com um aparato que marca cada passo nosso e registra cada imagem que passa pelas nossas retinas, será que este estímulo narcisista não ficará ainda mais poderoso e irresistível?

Pelo histórico e a lógica de negócios do Google, o constante registro e arquivamento da nossa vida – e não o uso ocasional – parece ser o objetivo do Glass: das buscas registradas no Google aos lugares que marcamos no Maps ou fotografamos para o Picasa, tudo é informação relevante para a empresa de Mountain View vender o seu principal produto: nós todos. Parece papo conspiratório, mas 98% do dinheiro que o Google ganha vem da publicidade. Os esforços para aumentar o alcance de sua rede G+ são justamente uma reação ao Facebook: a rede de Zuckerberg sabe cada vez mais detalhes sobre nós, e pode vender anúncios mais direcionados, mais valiosos. Vale a autocitação? O que eu acho importante:

Ninguém quer usar o Google+, porque os amigos estão todos no Facebook – ou fora das redes sociais. Mas o Google precisa do social. Então por que não criar um outro mecanismo, tipo óculos que coletam informações pessoais ainda mais íntimas e específicas, que as pessoas ainda estejam com vontade de pagar uma grana razoável para ter? No papel, parece o sonho da grande empresa de publicidade que é o Google. E, como tudo que vem da empresa, as pessoas parecem ok em ceder muitas informações pessoas para ter um serviço gratuito ou muito barato em troca. O acordo tem funcionado.


Mas mesmo para quem tem a visão romântica de que o Google é uma empresa “do bem”, seguindo uma “visão” de seus fundadores de não fazer o mal e que, ao contrário de todas as outras, seu objetivo principal não é o lucro, mas sim evoluir a tecnologia da humanidade e o acesso ao conhecimento. A pergunta permanece: pra quê colocar na rua este trambolho? De que maneira ele melhora – somando as facilidades e subtraindo os problemas – a nossa vida? O motivo pode ser trivial: muitas das coisas que o Google faz não tem o uso de pessoas normais ou os benefícios sociais levados em consideração em primeiro lugar. É uma empresa excessivamente de engenheiros, para aficionados por tecnologia. Mas o Google Glass especificamente é de longe o pior exemplo disso.

Acompanhe a apresentação do produto. A dupla de engenheiros-criadores cita várias situações em que o Google Glass iria “mudar nossas vidas” e para cada uma delas eu tinha uma resposta.


Vale ver, não só pra ficar mais claro quão socialmente ineptos são os criadores do Glass, mas para tentar entender a argumentação.

* “Um cara do nosso grupo postou essa foto dele chegando de uma corrida, que não seria possível sem os óculos”. Minha resposta: Alguém precisa disso? O tanto de “Eu completei uma corrida com o Nike+” na minha timeline não é suficiente? Pra que ele precisa de ter essa imagem?

* (Mostrando uma pessoa consultando o celular enquanto outra fala alegremente) “Estamos acostumados a nos abaixarmos para olhar no celular no meio da conversa, consultar coisas, e isso é incrível. Mas tira você ‘do momento’. Não com o Glass.” Todas as saídas para o bar que fiz onde rolou um Phone Stacking foram seguramente mais divertidas. Não é porque o cara vai checar o email ou fazer check-in “pelos óculos” que a coisa vai ser menos mala. Ele vai continuar longe.

* (Vídeo em primeira pessoa de alguém andando de mountain-bike) “Pense nas possibilidades: o ciclista pode saber a velocidade que está sem perder o contato com a natureza”. É obviamente um engenheiro que não toma sol falando de algo que não sabe. Todos os amigos que conheço que curtem andar de bicicleta (eu inclusive) querem mais é justamente curtir a natureza e o momento, sem muitas interferências que podem ser, inclusive, perigosas.

A lista segue. “Olha como é mais fácil tirar fotos de crianças” – como se alguém precisasse de ainda mais fotos de bebês. Fora um exemplo dos óculos fotografando o passo-a-passo de uma receita (é bem mais fácil se você quer cozinhar e ensinar para outra pessoa), não consegui ver uma única coisa genuinamente boa, quanto menos necessária. No fim, eles jogam a bola para os desenvolvedores, dizendo que estão ansiosos para “as funcionalidades incríveis que vocês vão criar”. Porque até agora não rolou uma única, ele quis dizer.

No vídeo original de divulgação, vi coisas interessantes. É, sim, romântico cantar pra namorada compartilhando a sua vista do por do sol. Mesmo. Estar longe e aparecer em um Hangout, Skype, Facetime ou qualquer coisa para as pessoas importantes é realmente legal, possivelmente mais legal que um telefonema. Mas há alguns motivos para a videoconferência não ter pegado até agora. Quando ela vira rotineira, há dezenas de problemas que evidenciam como a simulação de realidade está muito longe da realidade em si e criam um desconforto. Poderia me alongar um bocado nisso e um dia prometo fazê-lo, mas por ora leia depois este artigo da GQ.

Alguém sabe o efeito disso no nosso cérebro?

A ideia do Glass é colocar o visor acima do olho para que você “continue no lugar, mantendo contato visual com as pessoas”. Essa explicação dos engenheiros soa bonitinha, mas é tão primária e desinformada em relação ao entendimento do cérebro humano que me deixa dúvidas se alguém fora da área de exatas esteve perto do projeto em algum de seus dois anos e meio de desenvolvimento. Podemos começar a desmontar a visão deles só pensando sobre olhar pra frente, especificamente: você já percebeu que quando temos algo difícil ou importante para falar a uma pessoa é bem comum dar pausas mais longas e olhar um pouco para baixo ou para cima? Isso não é particular dos tímidos. Acontece que simplesmente olhar na cara de uma pessoa é mentalmente trabalhoso. Temos que decifrar o que as expressões dela querem dizer, interpretar um leve sorriso e associar a memórias. Precisamos dar uma pausa nesse fluxo de informações quando estamos tentando organizar um pensamento mais complexo, concatenar as ideias na nossa cabeça antes de falar. Da mesma forma, quando estamos perdidos em algum lugar com o carro abaixamos o volume do som instintivamente. Sergey Brin acha que o Glass vai interromper menos a gente. “Porque quando você está segurando um telefone e olhando pra baixo está tirando você do ambiente à sua volta”.

A solução, Brin, é olhar menos para o telefone e prestar mais atenção ao ambiente. Não colocar a tela do telefone na nossa cara.

É bem verdade que por questões evolutivas, o nosso cérebro se dá razoavelmente bem em lidar com estímulos paralelos: conseguimos dirigir numa rota conhecida, conversar e notar um cheiro esquisito ao mesmo tempo. Nem somos tão bons assim em foco, aliás. Mas isso não quer dizer que interrupções constantes e muitas informações ao mesmo tempo são boas. Pelo contrário: há um número crescente de evidências científicas que mostram que o excesso de informações e a falta de pausas entre os estímulos prejudica a nossa compreensão. A questão é amplamente examinada em estudos no livro A geração Superficial, de Nicholas Carr. Neste artigo da Wired ele elenca diversas pesquisas que comprovam que, por exemplo, um texto sem hyperlinks aumenta a compreensão em relação ao assunto tratado em comparação ao mesmo texto cheio de armadilhas para que as pessoas saiam da página. É uma questão de educação, é claro. Eu espalhei este monte de links no texto como referência, mas eu leio tudo antes para não perder o fim da meada, antes de clicar em algo, e espero que vocês façam o mesmo.

A ideia do Glass é espalhar links nas coisas de verdade. De novo: alguém estudou os efeitos no cérebro das nossas atuais tecnologias antes de propor algo que favorece ainda mais a multitarefa alucinada? O campo de pesquisas do impacto da tecnologia no nosso comportamento ainda é bastante novo, mas em um livro lançado há poucos meses, o médico Larry Rosen, dos maiores estudiosos do assunto, propõe que muitas pessoas, especialmente os mais jovens, sofrem de o que ele batiza de iDisorder (uma doença referente à Apple, caso você não tenha pescado a sacadinha). A moléstia moderna seria uma soma de outros transtornos psiquiátricos, do narcisismo à depressão passando pelo Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Rosen argumenta, baseado em diversos estudos recentes, que as novas tecnologias, especialmente os smartphones conectados a email, SMS e redes sociais o tempo todo potencializa qualquer predisposição a essas condições. Afirma o pesquisador:

Enquanto uma porcentagem da população foi diagnosticada com este transtorno, nossa dependência em tecnologia, a disponibilidade da internet 24 horas por dia, 7 dias por semana e nosso constante uso de dispositivos faz com que todos nós nos comportemos como se tivéssemos TDAH.” 


Nosso cérebro está sempre se adaptando, é verdade, mas qual é o limite? Até quando conseguiremos lidar com tanta coisa ao mesmo tempo? Como ele vai saber que o email que precisamso responder tem prioridade sobre a 49ª partida de SongPop do dia? Eu diria que muitos já passaram um bocado do limite do sustentável pelas nossas mentes. Além de distrair mais ainda a privacidade institucionalizando os Little Brothers, o Glass é um prato cheio para potencializar as distrações. Queremos isso? Eu dizia secretamente que um dos grandes trunfos do iPad, no início, era que ele não tinha multitarefa. Depois do iOS 5, ficou muito mais difícil ler livros nele. Se a narrativa ficava chata por 3 parágrafos, apertava o home e ia jogar qualquer coisa ou clicar em uma notificação que aparecia em cima, sem nem pensar. Nós queremos ter controle, e até estou aprendendo algumas técnicas, mas no fundo somos fracos.

E, veja, estou apenas tocando algumas das possíveis implicações fisiológicas. E em relação à nossa visão? É claro que o modelo de telinha ainda vai evoluir muito, mas quão saudável é ficar alternando o foco para algo próximo? Muitos de nós já temos a Síndrome da Vibração Fantasma (quando sentimos o celular vibrando, mesmo quando ele não está), mas e quando nos acostumarmos com alertas, vamos ver pontos mesmo quando eles não existirem? E o impacto de terceirizar boa parte do nosso conhecimento, de maneira mais prática e instantânea? Além de diminuir o valor de pessoas como o PVC, o excesso de confiança em fontes externas de conhecimento diminui a nossa individualidade e nossas opiniões sobre tudo – ainda mais quando o filtro da busca é justamente as nossas pesquisas anteriores. De novo: isso já é um problema atual, que apenas se aprofundaria se a visão do Glass-cotidiano vire realidade.

A resistência é fútil?

É difícil atacar tão fortemente uma “grande inovação tecnológica” sem ser tachado de ludita, anti-tecnologia, velho ou coisa pior (se a evolução é do Google, você é Fandroid. Se a evolução é da Apple, obviamente você é pago pela maçã). Mas eu fiquei 3 anos escrevendo diariamente sobre a evolução tecnológica, além de pesquisar profundamente o assunto para o meu livro (nas livrarias em novembro, se tudo der certo! =)) e acho que tenho algum direito de pensar “ei, isso não é desejável” quando vejo coisas como o Google Glass, por todos os motivos levantados acima. O único outro artigo que vi atacando a invenção é o de Jolie O’Dell, do Venture Beat:

O Glass, como mostrado hoje, é mais um perturbador passo em direção à web de conectividade toda-social, sempre-ligada, que não é um meio para um fim, mas uma causa e consequência em si mesma. É o ideal da mente coletiva que, em muitos aspectos, já chegou.

No fim, Jolie concede que “A resistência é fútil”,  que o negócio será lançado e será um sucesso. Eu gostaria de poder parar o desenvolvimento do Glass ou pelo menos redirecioná-lo fortemente, mas minha opinião não tem todo esse alcance. E, de todo modo, há poucos indícios de que corrigiremos o curso para algo menos ultraconectado – acho a chegada do botão “não perturbe” no iOS 6 um micropasso nessa direção. Em um dos melhores livros sobre inovação tecnológica, What Technology Wants (O que a Tecnologia Quer?), Kevin Kelly compara a nossa dependência atual com nossos aparatos a outras relações biológicas do reino animal. Em 2010, ele profetizava:

Está muito claro que nós estamos criando uma memória simbiótica com a internet e as tecnologias Googlianas. Quando o Google (ou um de nossos descendentes) for capaz de entender perguntas faladas naturalmente e estiver vivendo em uma camada das nossas roupas, nós rapidamente absorveremos esta ferramenta em nossas mentes. Nós dependeremos dela, e ela vai depender de nós – tanto para continuar a existir quanto para ficar mais esperta, porque ela depende de mais gente usando para melhorar a sua compreensão. Algumas pessoas acham essa simbiose assustadora, mas não é muito diferente do nosso uso de papel e lápis em uma longa divisão.


De fato, a tecnologia precisa da gente. Pensando apenas economicamente, é razoável dizer também que o Google precisa de cada vez mais informações nossas para ganhar dinheiro com publicidade e espantar o Facebook do mercado de anúncios ultradirecionados. O Glass será uma excelente arma, sedutora para muitos de vocês. Mas será mesmo que a resistência é fútil? No livro, Kelly fala que há poucos exemplos de uma tecnologia disruptiva que foi rejeitada ativamente por um povo. O maior deles? Por questões complexas que passam pelo código de honra samurai, o Japão foi o último país do mundo razoavelmente desenvolvido a adotar a pólvora: seu atraso em 200 anos para usar a tecnologia facilitou a derrota em algumas batalhas, é verdade. Mas é impossível dissociar esse histórico ao fato de que hoje a sua polícia não usa revólveres e a sua taxa de homicídios por armas de fogo é ridiculamente baixa. No Japão, 43 pessoas morreram com um tiro em 2002. Em Maceió, 15 foram baleadas fatalmente em um único fim de semana deste ano. Quão melhor seria a nossa sociedade se tivéssemos rejeitado totalmente essa tecnologia?

Estamos acostumados a usar um bocado antes uma tecnologia sedutora e avaliar/limitar o uso bem depois, quando a situação começa a ficar incontrolável: vide o exemplo do privilégio do carro nas grandes cidades. Este não é o único caminho. Será que podemos parar um pouco para pensar se queremos mesmo que uma empresa que literalmente lucra com a nossa falta de privacidade coloque um computador do qual não podemos desviar o olhar na nossa frente o tempo todo? Com uma câmera que captura tudo à nossa frente? O freio seria bom. Podemos começar a discussão civilizadamente aqui embaixo, queria ouvir a opinião de vocês e esclarecer algumas das minhas.

Publicado em: http://jezebel.uol.com.br/por-que-o-google-glass-nao-e-o-futuro-que-precisamos/